Por Wolmar Carregozi
Todos
os dias testemunhamos através dos noticiários de todo o país, a
peregrinação da população à procura de atendimento médico, seja em nível
ambulatorial ou na rede de atendimento de urgência: os
prontos-socorros. As pessoas se deparam com filas homéricas e o mau
humor do pessoal que atende: agentes de portaria, recepcionistas,
técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos.
O sistema de saúde brasileiro necessita, urgentemente, de uma atuação
mais efetiva das autoridades investidas na responsabilidade de fazer
com que o SUS cumpra as metas para o que foi criado.
A verdade é que, tudo acontece devido a um comportamento adotado
pelos políticos que entrava toda a assistência médica e a torna
dificultosa ou até mesmo inacessível a quem realmente necessita.
O resultado disso são os inúmeros óbitos que ocorrem a cada dia;
vidas preciosas são perdidas devido à superlotação dos hospitais da rede
pública, que tira a oportunidade de pessoas, com casos solúveis, de
serem tratadas em tempo hábil e com a dignidade e respeito que merecem.
Tudo começa mais ou menos assim: os postos de saúde municipais fazem o
atendimento ambulatorial, ou seja, aqueles casos que podem ser
resolvidos sem correria, envolvendo exame clínico, exame físico, pedidos
de exames laboratoriais, exames complementares (raios x,
ultrassonografia, tomografia computadorizada, eletrocardiograma, etc.).
Nesta modalidade de atendimento há uma maior interatividade entre o
médico e o paciente devido às condições de intimidade que o consultório
médico oferece, deixando tanto o profissional quanto o paciente mais à
vontade. Existe uma ficha em que consta todo o histórico médico do
paciente, o que vem a facilitar a evolução do seu caso numa consulta
posterior.
Neste contato é detectada, muitas vezes, a necessidade de se fazer um
encaminhamento a um especialista de outra área, com um posterior
retorno para acompanhamento do caso até o seu desfecho. Assim, se
estabelece uma cumplicidade produtiva.
O atendimento feito no pronto-socorro é mais impessoal e objetivo. Em
muitos casos, o paciente está numa situação crítica, com dor, febre,
falta de ar ou até mesmo inconsciente. A consulta, muitas vezes, é feita
na presença de outras pessoas (pacientes, técnicos de enfermagem,
enfermeiras, acompanhantes de outros pacientes, etc.). Há necessidade de
se fazer uma assistência mais efetiva, sem muitas perguntas e focar a
atenção na sua patologia básica. Isto, muitas vezes é interpretado pelo
paciente como falta de atenção, ou mesmo descaso.
Também não há uma ficha com o histórico do paciente, o que
impossibilita a existência de qualquer vínculo entre médico e paciente
além da consulta ocasional. Assim, após passar pelo pronto-socorro, o
paciente deverá retornar ao ambulatório para que seja dada sequência ao
seu tratamento.
Apesar de os dois serviços terem suas características bem definidas, a
população não faz distinção e acha que o importante é chegar até o
médico, não importando que as suas funções sejam diferentes.
O fato de as pessoas não saberem a diferença entre os serviços ocorre
por culpa, também, dos políticos que não fazem campanhas para ensinar
ao povo a usar o sistema de saúde corretamente e com responsabilidade.
Sabemos que após campanhas educativas conseguimos, por exemplo, reduzir o
consumo de cigarros e bebidas alcoólicas.
O sexo seguro, usando preservativos, só veio depois de uma
conscientização geral. Mais recentemente, temos o combate à dengue que
está sendo mais produtivo devido à participação de uma população
consciente e em estado de alerta, também em decorrência da publicidade.
No caso em questão, o resultado é que para ser atendido no posto de
saúde é necessário tirar ficha de madrugada. Por que não fazer um
agendamento durante todo o horário de funcionamento do posto?
Facilitaria, em muito, a vida das pessoas. Como no pronto-socorro a
ficha é feita na hora, entre ter que pernoitar numa fila de posto é
muito mais cômodo ir ao pronto-socorro.
Só os políticos não conseguem enxergar esta situação. Assim, os
gripados querendo atestado médico vão sendo atendidos e os infartados
vão aguardando na fila do seu iminente atestado de óbito.
Todo ser humano tem um limiar de tolerância. A paciência, o sorriso
nos lábios, a simpatia, a empatia, a boa vontade e altruísmo que são os
requisitos básicos para se trabalhar na saúde seriam constantes num
serviço humanizado, tanto para pacientes como para os profissionais da
saúde.
Mas, como ser cortês e gentil, quando um indivíduo mal educado, aos
berros exige atendimento urgente para a sua namorada que está “morrendo”
de cólica menstrual quando os médicos, enfermeiros e técnicos de
enfermagem estão ocupados com uma parada cardio-respiratória? Não que a
moça não mereça atenção, porém, neste caso, a prioridade é,
evidentemente, outra.
O problema é que brutamontes, “barraqueiros” e adeptos da antipática
“carteirada”(geralmente acompanhada pela hedionda frase: “sabe com quem
está falando?”), são protegidos por um sistema que tem medo de perder os
seus votos. Quando são contrariados, ligam para um amigo, que liga para
outro amigo, que liga para o hospital e pede uma prioridade para eles.
O problema da superlotação nos hospitais poderia terminar hoje mesmo,
se os políticos dessem autonomia para que o sistema de saúde
funcionasse soberano, fazendo bem o que ele é capaz de fazer. Que tal
autorizar os prontos-socorros a atenderem somente a casos de extrema
necessidade (e isso implicaria em pedir à clientela sem gravidade que
procurasse atendimento nos postos de saúde)?
Assim, ficariam nos prontos-socorros apenas os casos que, de fato,
merecessem internação hospitalar ou UTI. Porém, para que isto seja
implementado será necessário o funcionamento pleno dos postos de saúde,
tanto no que se refere a material humano como também medicamentos,
material de curativo, vacinas, etc.
Outra situação caótica poderia ser resolvida com o apoio da política:
hoje os pacientes que procuram os postos de saúde já chegam com o
diagnóstico pronto, feito por ele mesmo, um amigo, parente ou vizinho.
Pedem os exames laboratoriais e encaminhamentos segundo a sua própria
vontade.
Se o médico começa a disciplinar por conta própria os seus pacientes,
principalmente em cidades menores, não demora a receber um telefonema
do órgão a que é subordinado, pedindo para não desagradar à clientela
(implicitamente fazendo referência ao risco de perda de votos nas
próximas eleições). Se o médico insiste em seguir a sua consciência, é
demitido (sob a alegação, é claro, de outras razões).
Muitos pacientes se queixam de que estão procurando o atendimento no
pronto-socorro devido ao fato de nos postos dos seus bairros não ter
médico. Esta é, contudo, uma deficiência que deve ser corrigida de
maneira prioritária e urgente, pois, também é responsável pelo
atendimento caótico à saúde que se instalou no país.
Os exames complementares oneram muito os cofres públicos. 70% dos
exames pedidos vêm com resultado normal. Hoje, se o paciente pede para
fazer uma endoscopia digestiva, o médico clínico do PSF ou do posto de
saúde solicita.
Deveria haver uma determinação de se imputar a responsabilidade de
pedidos de exame de maior especificidade aos especialistas. Desta forma,
a endoscopia digestiva deveria ser solicitada apenas pelo
gastroenterologista, a mamografia pelo mastologista, o
eletroencefalograma pelo neurologista, etc. Isto geraria um melhor
rastreamento dos casos de real necessidade.
É preciso, portanto, acabar com esta situação tácita, em que tudo
funciona em função do voto. Se queremos consertar uma situação devemos
atacar a raiz do problema e não adotar medidas paliativas, como a
colocação de mais macas nos serviços de urgência ou a criação de novas
enfermarias.
Se queremos educar nossos filhos da maneira correta, não diremos
sempre sim a eles. Mais tarde, vendo o resultado positivo do poder da
sua autoridade, ele reconhecerá que esteve errado e lhe será eternamente
grato. Isto também se aplica à questão da saúde.
Devemos dizer
não ao atendimento de casos menores no
pronto-socorro para que não haja congestionamento e superlotação nos
hospitais. Bastaria para isso criar um serviço de triagem feito por
médicos e enfermeiros.
Em poucos dias, já se colheriam os frutos de um gerenciamento feito
com atitude drástica e sem medo de perder votos. Muito pelo contrário, a
própria natureza nos ensina que depois da poda, as árvores ficam mais
viçosas e frutíferas.
Atualmente, basta que saiamos de nossas casas e nos dirijamos a um
pronto-socorro que, dificilmente, deixaremos de ver uma pessoa gripada
recebendo soro numa maca que poderia estar sendo ocupada por um caso
muito mais grave e que, certamente, vai estar esperando na recepção.
Ao mesmo tempo, devemos oferecer alternativas seguras de atendimento
ambulatorial na rede pública, não permitindo que haja falta de
profissionais, assim como o suprimento efetivo de medicamentos na
farmácia básica. Isto evitaria o argumento frequente dos pacientes que
afirmam só terem procurado o hospital porque o posto de saúde está sem
médico, ou só tira 16 fichas, ou está em reforma, ou já encerrou as
atividades, etc.
Muitos pacientes procuram os hospitais para a realização de curativos
de feridas infectadas. Curativos infectados devem ser feitos,
exclusivamente, em postos de saúde, que por sua vez devem ter uma sala
destinada só para este fim, com uma porta voltada para a rua, para que o
paciente entre e saia de maneira rápida e sem contaminar o ambiente.
Nos prontos-socorros só devem ser realizados curativos e suturas em
feridas “frescas”, pois ainda não possuem secreção purulenta.
Medidas “cirúrgicas”, como as enumeradas aqui, melhorariam o quadro
da saúde de maneira radical. Em pouco tempo a população sentiria a
diferença para melhor. Simples, assim! O que falta é vontade e
iniciativa política.
*Wolmar Carregozi é ginecologista, obstetra, clínico geral,
socorrista e médico do trabalho. Atua em Vitória da Conquista e cidades
da região sudoeste da Bahia, Itaguarana S/A- Indústria de Cimento
(Nassau) e INB- Indústrias Nucleares do Brasil.